Celina Brod
Verdade ou consequência nas redes
Celina Brod
Mestre e doutoranda em Filosofia, Ética pela UFPel
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Como vocês sabem se tudo aquilo que tenho escrito por aqui é verdade? O que garante que as afirmações que fiz correspondem à realidade dos fatos? Diferente das máquinas, que acessam friamente toda informação disponível, eu escrevo com uma mente emocionada, enviesada, vacilante e contaminada por crenças que alguém escreveu ou disse. Cada pensamento que afirmo apoia-se no meu passado, nas minhas experiências e no testemunho de mensageiros que presumi confiáveis e inteligentes. Há dias que acordo e percebo que aquilo que julgava saber era mais pressa em afirmar algo do que realmente um saber. Há dias que nem deveria me atrever a escrever porque por dentro me falta piso, clareza e certeza.
Como vocês podem garantir que aquilo que acreditam hoje sobre a política irá perseverar daqui alguns meses? O que é, afinal, a pura verdade? Será aquilo que diz o seu mestre, candidato ou guru? "Eu amo você", diz o marido apaixonado. É verdade que você ama a pessoa que dorme ao seu lado? "Sim". Então, amor deve ser um tipo de verdade. Seria a verdade estática e imutável como defendia Parmênides ou a verdade é movimento e transformação como enxergava Heráclito? A verdade é um fato ou o modo como esse fato é interpretado? O que a maioria afirma é uma verdade ou ela não depende de uma quantia? Se dois filósofos competentes chegam a conclusões diferentes, um diz que P e outro diz que ~P, um deles deve estar equivocado. Essa tem sido nossa busca pela verdade, uma história sobre a fragilidade do conhecimento.
Antes das redes sociais, pipocavam filósofos afirmando que a verdade era questão de narrativa. Significados seriam completamente fluídos, a objetividade e a subjetividade eram argilas manipuladas pelo contexto à reveria. Para alguns pós-estruturalistas, a verdade era uma construção social e geralmente eram os poderosos que a escolhiam. Outros acreditavam que desarticulando o monopólio da informação da grande mídia alguma nova ordem social seria possível. No fim, quem soube explorar a construção de uma narrativa foi a extrema-direita, mobilizando indivíduos ressentidos com o intelectualismo elitista. A verdade é que a verdade sempre foi fruto cobiçado e proibido.
Mas, se você não sofre do mesmo problema da Rainha de Copas do País das Maravilhas, que acreditava em seis coisas impossíveis antes do café da manhã todos os dias, sabe que a verdade é mais ou menos aquilo que corresponde à realidade. Sabe também que a verdade é uma conclusão provisória, produto de relações observadas e analisadas, até que surja novo fato. Sabe, por exemplo, que eu, a autora deste texto, é uma mulher, não uma sereia do mar. Sabe que o salário mínimo brasileiro hoje é R$ 1.320, que fome causa desnutrição e que quando chove a terra fica molhada.
A internet andou mais rápido do que nossa capacidade para resolver conceitualmente a diferença entre ficção e realidade. Hoje passamos cada vez mais tempo em uma vida sensorial virtual do que uma vida real. Nas redes tudo pode ser alterado conforme quer a imaginação livre do editor; desde imagens, dados e datas. Até que a mentira se desfaça, alguém já repassou e preferiu acreditar como verdade, pois aquilo reforça crenças em sua tribo, sempre mais certa e bela que a tribo do lado. A verdade tem consequências, mas a falta dela mais ainda. Crenças artificiais competem com o mundo real, levando as pessoas a agirem de forma irracional; ações completamente incompreensíveis para aqueles que não receberam a mesma versão dos fatos.
O problema é que, na tentativa de regular a imaginação anárquica dos usuários das redes, podemos acabar reféns de quem se beneficia da seleção do que é menos ou mais verdade. Quem irá, por exemplo, regular os agentes governamentais, essa espécie imprecisa que volta e meia diz mentiras pragmáticas? É preciso sim criar regras, mas devem ser bem feitas e livres de ambiguidades, para que a liberdade de expressão não acabe censurada pela velha e temida parcialidade.
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